sábado, outubro 08, 2005

Crônica (2).


CONTINENTES, ARQUIPÉLAGOS E RETRATOS


Os verões já eram tórridos em Santa Maria, naquela época. As férias escolares começaram antes de novembro terminar. Sabia que não haveria ônibus, avião, carona, muito menos trem.

Consegui emprestado os volumes de O Tempo e O Vento. Fiz da poltrona de braços largos um navio, sempre pronto para partir do porto seguro da sala de visitas.

Naqueles dias quentes, com a cabeça apoiada num dos braços da poltrona e as pernas sobre o outro: viajava. Continentes, arquipélagos e retratos.

Quando cansava olhava o outro mundo pela escotilha imaginada nas duas janelas, que ladeavam a porta da rua. Lá já começavam a caminhar apressados fugindo do sol. Atrasados em seus carros para atenderem suas burocracias. Fazerem suas compras impulsivas.

A viagem tinha que terminar antes das aulas começarem, na primeira segunda-feira de março. No leme o velho Veríssimo. Aquele do qual só conhecia o perfil que Jorge de Andrade fizera para a revista Realidade.

No alto mar, às vezes me aproximando da costa, fui surpreendido por um amigo que surgia suado, ofegante, a cara em brasa. O vi pelas escotilhas chegando como um pirata a assaltar minha viagem.

Enquanto eu fazia duma poltrona um navio sem limites, o amigo fazia da outra ao lado o seu porto seguro. Sob o braço molhado trazia Hermann Hesse. Nossos mapas de viagem se cruzaram.

Não lembro mais se ele já tinha lido Érico Veríssimo. Sem demora trocamos bússolas. Hermann Hesse assumia o comando com Peter Camenzind ao meu leme.

O coração acelerado do amigo em busca da outra poltrona foi porque, passando pela Primeira Quadra, entrou na Livraria do Globo. Naquele tempo a livraria era enorme, pé-direito alto. Havia mezanino de onde os funcionários enviavam aos clientes mercadorias numa pequena caixa de madeira amarrada a um cordão. Além das estantes atrás dos balcões, os livros ficavam disponíveis pela circulação da loja. As livrarias ainda trabalhavam com estoques. Seu Milton gerenciava. Belvenir atendia. Admirava a solenidade de seu Bráulio desenhando a letra no bloco, para fazer a nota da compra.

Não sei quanto durou a visita do meu amigo à livraria. Não sei o que olhou e leu, mas não comprou nada. Chegou lá em casa na corrida para escapar do sol, mais da vergonha. O via como gigante, assim como os das histórias que lera muito antes, atravessando a Saldanha Marinho com um pé na esquina do Café Turfista e o outro na esquina do Centro Cultural. Na estante ao lado da vitrina vi o Hesse; peguei e saí. Correndo? Comecei a correr depois; até pensei no Demian que também estava ali, mas era difícil. Para carregar os dois...?

Peter Camenzind não era meu, mas não deixaria de lê-lo também naquele verão. Eu fico com o livro até terminar a leitura, se não atravesso a praça e nunca mais poderás passar pela Primeira Quadra. Mas tens que parar no tempo, ler o Hesse e depois continuar no vento.

Aceitei. Ancorei a poltrona na sala. Li a minha primeira prosa poética de Hermann Hesse, embaixo do caramanchão de maracujá. Deitado na rede, sentindo o cheiro do musgo que desde sempre cobriu aquele muro rente. Viajava: tantos continentes, arquipélagos e retratos.


Dias depois meu amigo voltou para buscar o seu Peter Camenzind. Voltei ao vento, sem perder tempo. Outra vez na poltrona. O tempo e o vento não cabiam na rede.

Logo depois a prima, que era professora, autorizou minhas compras na conta corrente que tinha na Globo. Estabelecemos um trato, que possivelmente eu nem sempre tenha cumprido: para comprar novo livro, só depois do outro pago a perder de vista.

- Paulo Roberto Araújo-

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Adorei as metáforas! Também já viajei com Érico. Só que viajei no tempo, na árvore genealogica da minha família. Enquanto lia O CONTINENTE, identificava em cada personagem algum traço de um parente, ou meu. Como se todos os gaúchos estivessem retratados naqueles personagens. Assim, meu pai foi um pouco capitão Rodrigo, Licurgo. Minha mãe, Bibiana. Eu, Ana Terra... E por aí vai!

11/10/05  
Anonymous Anônimo said...

Grandes viagens são possíveis através de boas leituras, Sabrina.

27/10/05  

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